Brasil -


27 de junho de 2010

O Estado brasileiro e a biblioteca-patrimônio

Se posso concluir algo do que venho notado desde o dia 25 de maio deste ano, é que há um comportamento padrão no Brasil quando se trata de acervos bibliográficos e documentais: descaso, obtusidade. Em primeiro lugar, nosso parlamento mostrou-se vagaroso demais e muito pouco eficaz ao criar uma lei que obriga que todas as instituições de ensino tenham uma biblioteca. Em segundo, falta bibliotecas pelo país em boas condições para o uso. Em terceiro, vimos uma faculdade tradicional da principal instituição de ensino superior do país, a Faculdade de Direito da USP, relegando seus livros a caixas, ao mofo e às infiltrações de um prédio inadequado para a vivência acadêmica. Ontem e hoje, soubemos, com imenso desagrado, o descaso do Ministério da Justiça com seu acervo das obras de Goethe (talvez a coleção mais completa da América Latina) e o do Arquivo Nacional em Brasília com documentos do período da Ditadura Militar na fila para a triagem. Temos aí demonstrações do executivo e do legislativo nacionais, de uma autarquia federal e outra estadual e todos os municípios criando um cenário, no mínimo, decepcionante. 
Gosto de livros. Acho que posso dizer por que todo esse cenário é preocupante. Porque ele me faz recordar de toda minha experiência em procurar por livros. 
É claro que temos ainda boas situações de conservação e de acesso, apesar de as condições de vivência serem, em geral, insatisfatórias. 
Isso já nos mostra um padrão: o Estado brasileiro, qualquer que seja o seu nível (Federal, Estadual ou Municipal), pensa que promover uma biblioteca se resume a montar um acervo organizado e disponibilizar controladamente o acesso a esse acervo, criando regras de empréstimo e consulta, etc. É claro que isso é fundamental, mas está longe de ser suficiente. Porque essa é a visão patrimonial de uma biblioteca, não é a sua dimensão vivencial. 
Conheci alguns diretores de bibliotecas para quem essa dimensão vivencial é simplesmente desprezível. Basta permitir que os alunos possam tomar o livro emprestado e sejam obrigados a devolvê-lo. E basta. 
Diatne disso, não posso deixar de lembrar de como comecei a frequentar bibliotecas. 
Morando em uma cidade culturalmente precária (e que nunca aceitou esse fato), comecei a me interessar intensamente por livros por volta dos 14 anos (aquela idade difícil). Para poder ler o que me interessava, tinha de recorrer à biblioteca municipal pois, embora houvesse uma biblioteca (bem pequena) em minha escola (particular, diga-se), esta nem sempre estava aberta e, quando estava, tinha um acervo insatisfatório (os livros interessantes ficavam inacessíveis e os livros acessíveis já estavam ficando insatisfatórios para mim). 
A biblioteca municipal, por sua vez, funcionava num prédio histórico antigo e pouco adequado para a conservação e a frequentação. Apesar disso, conseguia tomar emprestados alguns livros, apenas de literatura (o que já era alguma coisa para começar a formar o meu gosto). Tinha um jardim simpático, sujeito a chuvas, mas era pequena demais para juntar alunos de séries iniciais e adolescentes procurando respostas sob o mesmo teto. Assim, nós que líamos por interesse e não por obrigação, quase sempre achávamos mais vantajoso levar o livro para ler em casa. 
Creio que não seria demais dizer que sempre encontrei essa situação de pouca receptividade em todas as bibliotecas por que passei, mesmo as melhor equipadas. O resultado cultural disso é evidente: acessamos os livros, mas não acessamos outras pessoas que podem estar procurando o mesmo que nós. 
Por isso, quando vejo diretores de biblioteca tentando tornar sua biblioteca um lugar interessante promovendo eventos, lançamentos de livros e outros eventos parecidos, ou mesmo tentando tornar a biblioteca um centro de acesso à internet, não deixo de esboçar um riso irônico. São casos de boas intenções, e só. Não são inválidos, mas não tocam no ponto mais importante. 
Quando falo de um aspecto vivencial de bibliotecas, penso nas pessoas que vão a elas em grupo e as que vão sozinhas. Para as primeiras, é fundamental que a biblioteca seja confortável o suficiente para segurá-las lá, para que pesquisem, estudem e se divirtam lá enquanto procuram seja lá o que for. Que elas possam fazer do lugar uma espécie de sede imaginária de seu pequeno clube. Para os mais solitários, o conforto de um lugar onde se possa acidentalmente compartilhar angústias e tédios. E uns chistes eventuais. Tudo isso sem atrapalhar os necessários espaços de silêncio que uma bilbioteca deve abrigar, para os que estão naquela fase de mergulho numa questão.
Tudo isso está bem distante de nossas bibliotecas. Elas não sabem conjugar espaços de conversa interpessoal e de solidão. Elas não conseguem, por isso, tornar-se o centro magnético de nossa vida cultural. 
Agregar o acesso à internet é um recurso precioso e importante, especialmente enquanto o acesso ao computador e à banda larga ainda não se popularizou no país. Mas é ainda o mesmo aspecto patrimonial. 
As bibliotecas do nosso país deveriam esforçar-se para ser como aquelas livrarias históricas, como a José Olympio, confortável para atrair literatos e escritores em geral em seus momentos de ócio ou de pesquisa. Lugares onde as pessoas possam demorar-se. 
Tudo isso nos falta porque temos pouca intimidade com os livros, e continuaremos com pouca intimidade enquanto isso nos faltar. 
Disse que gosto de livros. Disse do que sinto falta no contato com o lugar onde encontro os livros que procuro. Agora, quero dizer o que encontro neles - não nos lugares, mas nos livros. 
Só procurei os livros porque me interessei por eles. Isso foi quase acidental. Mas, uma vez ocorrido o acidente, quis reproduzi-lo ao infirnito. Por uma razão simples: fiquei mais forte. Se, por um lado, por me faltar qualquer orientação em minha busca por livros (eu nem saberia dizer o que procurava, com certeza), eu tenha ficado mais solitário por conta do tempo maior que sentia necessidade de dedicar a eles, por outro, meu desenvolvimento intelectual foi sensivelmente melhor que o de muitos colegas de escola que não se dedicaram a essas horas solitárias. Nunca teria trocado minha vida pela deles, desde então. Por isso, entendi: há um poder depositado nos livros, como o poder de sementes. Pegamos tais sementes ali depositadas e as engolimos e fazemo-las crescer a partir de nosso próprio substrato e elas se desenvolvem, cravando raízes em nós e deixando nosso próprio substrato mais fibroso, mais resistente, mais forte, menos  cediço.  Alguns podem chamar isso pelo nome de autonomia. Eu prefiro dizer que os livros me deram a força necessária para aspirar à liberdade.
É por isso que considero todos os fatos decepcionantes vistos até hoje crimes de lesa-liberdade. Aos que considerem isso um excesso, digo que não passam de tolos. "Será que o cuidado com a coleção goetheana faria tanta diferença?", poderiam perguntar. Bom, é claro que os estúpidos não são capazes de reconhecer a grandeza da vida de um homem de letras e ciências como Goethe. E, por outro lado, se alguém é capaz de deixar uma coleção de tal qualidade mofar, então é capaz de tudo. Até de vender livros didáticos como papel para reciclagem, como já aconteceu. 
O Estado brasileiro não quer que seus cidadãos aspirem à liberdade. Ele quer dotá-los de igualdade social, e só. Não quer que as diferenças cresçam, porque pensa que as diferenças são destrutivas, como o talento. Então, nossos deputados não se importam tanto se nossas escolas terão bibliotecas, o Executivo não se importa com os livros que estão sob sua responsabilidade, e nossas instituições promotoras de acervos não se importam tanto com nossa história e com nossos estudantes. Subsiste, parece, aquela desconfiança imperante em nossa última ditadura diante de uma possível reunião acidental de pessoas inteligentes. Ainda que isso se tenha tornado legal.

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