Brasil -


5 de junho de 2011

Do policial ao comediante

Alguém já disse que as ideias que nasciam no hemisfério norte costumavam chegar invertidas no Brasil. Graças à internet, esse tipo de inversão foi minimizado, senão extinto. Mas, pelo visto, aqui e ali ainda acontecem algumas distorções. 
O último exemplo parece ter sido a Slutwalk. A iniciativa de trazer a "Marcha das vagabundas" para o Brasil foi coisa muito bem acertada. Precisamos disso. O Brasil precisou criar uma lei específica contra agressões a mulheres e precisou criar delegacias específicas para as mulheres na tentativa de não deixá-las sem assistência, na mão de delegados e policiais machistas, de companheiros agressivos e outros canalhas do gênero. Nós, que temos parentes mulheres, namoradas, companheiras, amigas, precisamos saber que nossas instituições vão recebê-las sem distinções de sexo. Que agressões físicas a elas não serão toleradas e muito menos serão transformadas em agressões morais e psicológicas por meio de algum tipo absurdo de culpabilização da vítima. 
A índole do movimento, que começou no Canadá, é bem clara: não aceitamos que as instituições de segurança assumam em seus procedimentos uma perspectiva machista. Não há roupa ou qualquer outro tipo de comportamento que "autorize" um estupro. Não existe "estupro consentido". As mulheres deram o recado: o problema dos ataques sexuais está no atacante, não na vítima. A declaração, vinda de um policial daquele país, de que cabia às mulheres não provocarem ataques sexuais "não se vestindo de vagabundas" era a oficialização da transferência da culpa. 
A organização do movimento no Brasil percebeu logo que a situação era bem parecida aqui entre nós. E acertou em aproveitar o momento e repercutir o recado nestas bandas. 
Mesmo assim, a marcha em São Paulo caminhou de uma forma que me deixou um tanto ressabiado.
A marcha, que lá fora terminou em frente ao quartel general da polícia, terminou por aqui em frente a uma casa de espetáculos de comédia stand up.
Bem, essa mudança de trajetória deveria parecer curiosa por si só. A alegação para isso foi a seguinte: Rafinha Bastos, um dos donos da casa, fez uma piada pró-estupro de mulheres feias. 
Ora, é óbvio que piadas não são inocentes. Desde que a comédia é comédia, ela pleiteia a melhora dos costumes da cidade. Ela põe em cena o risível, o absurdo, o grotesco como tal. Não é preciso inundar-se de teoria para perceber isso. Basta ler, basta prestar atenção. 
O último espetáculo de Rafinha Bastos chamava-se "A arte do insulto". Não é difícil imaginar qual a premissa do show. Talvez, porém, seja difícil ainda para nós absorvermos o formato da comédia "de cara limpa". Porque, embora ela já fosse feita por nomes famosos como Jô Soares, Chico Anísio, Tom Cavalcanti, Costinha, entre outros, o público tinha mais facilidade em associar esses comediantes com os personagens que eles representavam, sobretudo na televisão. Rafinha, porém, não se apresenta com figurino, maquiagem, e outros elementos de caracterização que um personagem poderia requerer. Ainda assim, quando se apresenta, ele, talvez mais do que outros, constrói um personagem para si, só com palavras. Um personagem que, na minha opinião, é meio como um Analista de Bagé sem diploma de psicanálise, sem pelego e com smartphone. Ele aproveita o fato de ser gaúcho para explorar o potencial cômico de clichês relacionados àquele estado e os faz aderir ao seu próprio corpo e a sua própria voz.  Como a tatuagem que ele ostenta no braço. Às vezes, trata-se apenas de dar voz a coisas terríveis, que passam pela cabeça sem a pretensão de materializarem um ato. E, como em toda boa comédia, às vezes ele se dá bem, noutras, se dá mal. Mas, invariavelmente, ele assume o papel do detestável, do insensível, daquilo que nos faz rir porque parece ir além do que qualquer um de bom senso faria ou diria. 
Ele não diz apenas piadas. Ele mesmo é uma piada. E certamente essa é a razão de seu sucesso. 
É muito difícil ver semelhança entre Rafinha Bastos, de quem se espera uma frase escrota ou grotesca, e o policial de Toronto, de quem se espera que faça cumprir a lei e promova a segurança entre os cidadãos. Cada qual tem uma função saudável a desempenhar: a do policial, em toda a cidade, protegendo os cidadãos de crimes, independentemente de seu sexo; a do comediante, em seu espaço particular de arte, desempenha a função quase que sanitária de nos purgar de coisas que, para nosso próprio bem e o da civilização que queremos, preferimos que não sejam ditas, muito menos feitas. Coisas que, se não fossem ditas no espaço delimitado de um palco, ou no tempo determinado do video, restariam estagnadas na cabeça de muita gente, como água parada, minando a sanidade dos mais suscetíveis. 
É bom que todas as pessoas percebam que a simples ideia de uma mulher feia abraçando seu estuprador é absurda. Enquanto percebermos que isso é um absurdo, estamos indo bem. Mas também precisamos perceber que essa ideia tem um lugar no espaço delimitado e quase ritual da piada. Não qualquer piada, não a piada ruim, que escamoteia preconceitos. Aliás, cá entre nós: quem já viu Rafinha Bastos pelo Youtube ou no CQC percebeu que a graça dele vem de não escamotear, mas de trazer para a luz coisas que os preconceituosos convictos prefeririam esconder ou contar apenas ao pé do ouvido. 
Aliás, em uma entrevista para a Rolling Stone do mês passado ele disse que era uma cara "que carrega preconceitos". Duvido que alguém não carregue. Mas isso não significa que a condescendência com os preconceitos seja o caminho. É de se pensar, contudo, se a melhor maneira de lidar com eles, em vez de sufocá-los, seja dar-lhes uma expressão autodestrutiva. Transformá-los em palavras incapazes de formar qualquer programa, qualquer utopia. Tirar sua potência, anulando seus efeitos. "Sangrá-los", digamos assim. Talvez o humor politicamente incorreto possa nos ajudar com esse "efeito sanguessuga".
A princípio eu não ficaria preocupado com reações adversas a esse tipo de humor. Penso que elas seriam mesmo saudáveis. Mas o país anda muito propenso, ultimamente, ao bom-mocismo. Isso é o que me preocupa de fato. O meu temor, no final das contas, é que acreditemos que para conseguirmos mais liberdade, precisemos ceder liberdade; que acreditemos que é necessário trocar uma liberdade por outra. Para nós, que estamos tentando dar uma forma social para nossa democracia, isso pode ser muito perigoso.


22 de maio de 2011

A inveja, "custe o que custar"?

Nós, jornalistas, somos conhecidos por sermos uma categoria profissional pouco unida. Nossos sindicatos não têm a força que o de outras categorias, apesar de  agremiarem os profissionais que noticiam todas as greves.
Então, não foi surpresa para mim ler a matéria da primeira página do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de hoje. 
Quando eu fui repórter, lá nos idos de 1996, ocorreu um fato qualquer (não me lembro dos detalhes) que pôs um jornalista em evidência. Na época, a editora do jornal (que, aliás, foi minha primeira professora de jornalismo), cunhou uma frase que eu nunca esqueci, principalmente porque nos anos que se seguiram ela pouco se confirmou: jornalista só é notícia quando é preso ou quando morre. Ou alguma coisa do gênero.
Essa sentença me pareceu curiosa, pois eu não sabia dizer, de pronto, se ela era uma constatação factual sobre a profissão ou se era uma diretriz ética. Ou ambos (às vezes, o status quo é o que se quer manter).
Com o tempo, porém, identifiquei nela um componente psicológico. Os jornalistas, seja por um hábito, seja por convicção, não gostam de ser o foco das atenções. E, principalmente, não gostam que outros jornalistas sejam o foco das atenções. O colunismo é a única exceção, até para manter aquela sensação de "esforço e recompensa" de que qualquer profissão precisa. Afinal, para todos os efeitos, só os mais competentes e capazes são titulares de colunas. E, para efeito dos cafezinhos das redações, só os que têm melhor trânsito com a chefia ou com o dono do jornal.
Imaginem, então, se alguém decide pôr o jornalista sob o foco das câmeras. E pior: num programa recheado de humor. E pior ainda: invertendo a praxe jornalística. Inaceitável, certamente inaceitável. 
Ora, mas isso vem sendo feito há algum tempo, entre nós, brasileiros. Ernesto Varela e os filhos do Amaral é o exemplo mais antigo de que posso me lembrar. Mas, penso, esse personagem era melhor aceito pela categoria dos jornalistas por conta da época em que era feito. O Brasil estava sentindo a garganta presa e precisava dizer para si mesmo umas verdades. Precisava pôr autoridades, que abusavam impunemente de suas posições, no palco da comédia política em que o rei estava a cada dia mais nu.
Depois, veio o Casseta e Planeta. Não falo do trabalho de seus redatores na revista em que começaram, mas penso especificamente no programa de TV. Coisa curiosa de se pensar que eles tenham conseguido penetrar, com sua acidez, os cenários da Globo, que sempre foi conservadora, especialmente sobre política. Os "cassetas", porém, já saíram com um slogan que amenizava os espíritos, especialmente dos colegas jornalistas: humorismo verdade, jornalismo mentira. Não era jornalismo, portanto, pensavam o editor, o colunista, o chefe de redação. Era aceitável. 
Com o CQC, a coisa é diferente. Nem mesmo a presença de Marcelo Tas como capitão do time parece estar ajudando com a "companheirada" jornalística. Ou, pelo menos, não junto à Folha. Talvez porque, diferentemente dos "cassetas", eles não peçam licença para poder satirizar os limites do nosso jornalismo político de autoridades. Talvez porque, ainda, eles consigam fazer com que essas mesmas autoridades, que batem cartão nos telejornais do país, "desçam do salto" e se refugiem no "você sabe com quem está falando?" - mesmo que isso, às vezes, não seja dito com palavras, mas com o braço de algum segurança, ou a mão-boba de um ou outro parlamentar metido a "espertinho".
Duas coisas, contudo, me chamaram mais a atenção nessa página da Folha. Uma, o destaque para o sucesso financeiro dos rapazes do CQC, especialmente de Rafinha Bastos e Danilo Gentili. Outra, a acusação de "duas-caras", isto é, de que são bonzinhos na TV e mauzinhos nas redes sociais e nos seus shows de stand-up comedy. Uma colunista chegou a compará-los ao duplo personagem de Stevenson, Dr. Jekyll/Mr. Hyde. Teria o primeiro dado incomodado demais a ponto de descambar na comparação um tanto imprópria?
Imprória? Claro. Comece pelos nomes, leitor-transeunte: a postura politicamente incorreta desses rapazes, presente em seus shows e em redes sociais (e também na TV...), tão exposta, poderia ser comparada a um Mr. "Hyde"?
Mas há um aspecto na comparação de que a colunista realmente não se deu conta: Rafinha Bastos e Vitor Gentili, assim como dos personagens de Stevenson, são, em seus programas e shows, personagens também. Essa talvez seja a principal confusão. Ao contrário dos integrantes do Casseta e Planeta, os do CQC são (bem, nem todos, é verdade) melhores na apresentação de seus textos. Rafinha Bastos, então, é o melhor exemplo. Desde o título de seu show, o Arte do Insulto, ele deixa bem claro a que se propõe. Quem já teve a oportunidade de assistir a seus vídeos no Youtube percebe isso melhor. E ele leva isso para a TV, em seus comentários esdrúxulos no CQC.
O caso de Rafinha, aliás, é o mais elucidativo. Porque ele atua, de fato, nas duas linhas: a jornalística e a humorística. Como jornalista, em A liga, ele aborda  assuntos de utilidade pública e direitos civis de um modo ágil e empático; muito próximo, aliás, de abordagens "sérias" feitas por outros jornalistas. No CQC, ele traz para a bancada do apresentador aquele gaúcho reclamão de seus shows e de seus vídeos do Youtube, uma espécie de âncora mal-humorado que, de vez em quando, morde a própria língua. Pode-se falar em contradição em uma e outra forma de apresentação? Ou será que os jornalistas gostariam que ele fosse realmente homofóbico, como o clichê que ele representa? Será que alguém com mais de um neurônio consegue pôr no mesmo saco a bancada evangélica do Congresso Nacional e o CQC?
Ou será que o que incomoda mesmo é que ele e os demais rapazes do CQC tragam o jornalismo para o primeiro plano e o subvertam diante das câmeras? É engraçado ler um trecho da matéria, que diz: 
"Em uma inversão da lógica jornalística, o mais importante não é a resposta recebida, e sim a pergunta feita."
Será que os colegas jornalistas estão com inveja de não poderem fazer perguntas como a que Danilo Gentili fez a Renan Calheiros? Ou estarão enfurecidos porque o "jornalismo moleque" que o CQC apresenta na telinha faz o seu jornalismo parecer mais "engomadinho" e "bem-comportado", por contraste?
Acho estranho que peçam coerência em matéria de humor. Este país parece não aceitar muito bem algo que vá além da piada-pronta.  Depois da cláusula de embargo aos humoristas vigente nas últimas eleições, talvez uma lei que decrete o bom-mocismo como a regra de conduta seja promulgada em breve. E aí, todos nós poderemos viver como uma sociedade inglesa vitoriana. Aliás, aquela mesma que permitiu a Stevenson conceber um personagem como o Dr. Jekyll, que atemoriza o sono dos jornalistas da Folha...


8 de maio de 2011

Tradução inédita pero no mucho

Charada semântica: o que é que é inédito mas não é?


Saiu em nota na Ilustríssima da Folha de S. Paulo de hoje o anúncio: "a tradução inédita da obra de Karl Marx...". Qual obra? "A guerra civil na França".
Só tem um probleminha: aqui no país já existe uma tradução da Editora Alfa-Ômega (de São Paulo), feita a partir do espanhol e confrontada com a edição francesa, referenciada nas edições inglesa e alemã. Edição esgotada, presumo.
Pensei que fosse (mais um) erro de jornalista, mas que surpresa em ver o anzol brilhando na página da editora: "uma tradução inédita" (veja um print da página abaixo).




O autor da nota pode até dizer que a editora o induziu a pensar que a obra ainda não tinha sido traduzida (e, além do mais, quem se lembra da Editora Alfa-Ômega além de uns marxistas empoeirados e uns caras que têm os sebos por segunda casa?). De fato, a editora não precisava recorrer a esse expediente fácil de propaganda. Afinal, de que interessa o ineditismo de uma tradução em particular quando a tradução da obra em si não é inédita?
Mas, prezado jornalista, um artigo significa muito! E custa caro para o sentido... Tudo bem que a editora negaceou. Você, porém, pagou o preço.