Brasil -


25 de maio de 2010

Os parlamentares e a Biblioteca

 Hoje foi publicada uma lei federal reveladora, sob dois aspectos. Trata-se da lei 12.244, que pretende garantir que toda escola, pública ou privada, tenha uma biblioteca. O texto é bastante simples: quatro singelos artigos, curtinhos, incluindo o tradicional dispositivo "Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação".
Bem, o primeiro ponto revelador não diz respeito ao trabalho de nossos tão ocupados deputados e senadores, mas ao objeto de sua atenção. Por sorte ainda não há necessidade de nenhum legislador que nos force a beber água regularmente. Temo, porém, que este dia esteja próximo. Afinal, se há necessidade de obrigar uns tantos prefeitos, governadores e empresários a colocar bibliotecas nas escolas, a coisa não vai bem. E sabemos que não vai. Se a garotada não tiver livros à mão, seu viço  vai sumir, como uma planta desidratada. Surpreende que, a esta altura, a existência de uma biblioteca - bem montada, com acervo atualizado e de qualidade, aberta e utilizável - não seja pressuposta quando se fala em abrir uma escola.
O segundo ponto, no entanto, cai direto sobre os ombros dos nossos empenhadíssimos legiferantes.Não bastasse o projeto ter levado quase sete anos em tramitação (ordinária) na Câmara dos Deputados e no Senado, o texto da lei prevê que a universalização deverá estar completa em até dez anos. Com isso, nossos parlamentares conseguiram garantir que toda a geração nascida no início deste milênio poderá chegar às portas do ensino superior (supondo que termine o segundo grau) sem nunca ter entrado numa biblioteca. Sobretudo porque nós sabemos que faltam bibliotecas neste país.
Pelo visto, nossos parlamentares são bastante escrupulosos. Descontado o último artigo, que não requer análise, temos uma curiosa média de dois anos e uns três meses de leitura e discussão para cada artigo até o envio para sanção do presidente. Contudo, talvez eu seja um idiota e não consiga ler as sutilezas extremamente diáfanas da técnica legislativa contida nessa meia lauda de texto (uns 914 caracteres). Só pode ser isso: tanta demora para concluir a performance virtuosística dos nossos representantes...
Há um desinteresse generalizado pela política educacional inversamente proporcional ao valor cada vez maior que todos depositamos na educação. Todos parecemos estar de acordo ao dizer que educação é muito importante (a educação formal mesmo). Mas quando se trata de tomar decisões práticas que a afetem diretamente (haver ou não bibliotecas, por exemplo), o que vemos é o desinteresse de diretores de escola, prefeitos, governadores e donos de escolas particulares. E, claro, nossos legisladores máximos comungam do mesmo sentimento. É reveladora tanta demora; e é vulgarmente clara a intenção de concluir o trâmite em um ano de eleições, depois de passadas duas legislaturas.Todos ganham com isso. Quero dizer: o autor da proposta, os relatores pachorrentos, todos que votaram a favor, e até o presidente que apenas sancionou. Todos estarão este ano berrando aos quatro ventos que são pais da criança.
Até onde sei, a universalização do ensino fundamental foi uma meta estabelecida desde a constituição de 1988, pelo menos. Levamos quinze anos para perceber que para haver um bom ensino é preciso haver boas bibliotecas? Bom, talvez seja um sinal positivo: quem sabe daqui a mais quinze percebamos que também é necessário cuidar do bem estar dos professores (aquela pessoa que geralmente faz com que os alunos vão à biblioteca...). É, inclusive, curioso que tenham lembrado do bibliotecário que cuida do acervo e esquecido daquele que cuida da frequentação ao acervo, que dá a ele um sentido vivo.

Eu, no entanto, sugeriria aos nobres parlamentares que não usassem sua participaçao na elaboração dessa lei como capital eleitoral este ano. Esperem também dez anos. Até lá, procurem reparar se valeu a pena gastar tanto tempo nessa lei. Não me refiro ao tempo que tenham gastado pensando na matéria, que é evidentemente válida. Refiro-me ao tempo que gastaram elaborando o texto. Pois, já que se deram ao trabalho de legislar sobre aquilo que deveria ser o óbvio, deveriam ter previsto penalidades para prefeitos, governadores e empresários que não realizam uma tarefa tão básica. Deveriam, também, por força da coerência, ter acrescentado um novo parágrafo ao segundo artigo, proibindo que donos de escolas particulares usem a compra de livros como pretexto para o aumento de mensalidades. Afinal, se sabem que o ensino particular vem cobrindo há muito tempo um espaço que deveria ser coberto pelo ensino público, deveriam relembrar aquela velha meta de tornar o ensino acessível ao maior número, seja ele mantido por quem for. Deveriam, enfim, ter enfatizado não só a constituição do acervo bibliográfico, mas estabeler uma simples regra: a de que as tais bibliotecas deverão estar abertas por tanto tempo quanto for possível. E que deverão ser não só lugares bem montados, mas também aprazíveis. Que deverão ser lugares que cativem crianças e adolescentes. Afinal, trata-se de prescrever algo como beber água.
Sinto dizer que o texto dos nossos parlamentares é muito lacônico para tanto tempo de elaboração. Não faz jus ao trabalho de seus relatores. Diz muito pouco. Parece uma daquelas peças jurídicas bonitas, eivadas de boas intenções e que será lembrada até outubro, quando vai desaparecer sob a monótona campainha das urnas.


+ essa
Para se ter uma idéia de como nossos parlamentares deram voltas em torno de um problema que merecia melhor atenção (qualitativa e não quantitativa), seria útil lembrar a pesquisa divulgada pelo Minc sobre bibliotecas públicas municipais do país, e matéria sobre a mesma na Folha de S. Paulo em 01 de maio deste ano.
Bibliotecas públicas são diferentes de bibliotecas de escolas em uma série de aspectos. Mas servem como indicadores. É difícil imaginar que um município que não conte com uma biblioteca pública venha a ter bibliotecas em escolas. Pois se a autoridade municipal não se importa em pelo menos manter uma biblioteca para todo o seu município, o que dizer de uma em cada escola? E a iniciativa privada, que biblioteca colocará à disposição de seus alunos, numa situação dessas?
Nesse caso, apesar de o governo tentar explorar os aspectos mais positivos da pesquisa (quase universalização das biblotecas públicas, apesar de poucas funcionarem à noite), a Folha de S. Paulo acerta ao chamar a atenção para o tipo de uso que é feito dessas bibliotecas, bem como para a qualidade insatisfatória dos serviços prestados.
Ora, se a maior parte usa as bibliotecas municipais para pesquisas escolares, é um sinal significativo de que falta bibliotecas nas escolas (ou, pelo menos, elas não estão ficando abertas e em condições de uso, com material apropriado e instalações capazes de abrigar acervo e usuários). E se as bibliotecas municipais carecem de conforto e de serviços básicos (como acesso à internet disponível aos usuários), o que pensar das bibliotecas escolares?
Bibliotecas escolares são locais capazes de iniciar crianças e jovens no uso das bibliotecas, seja consultando livros, seja efetuando pesquisas pela Internet, acessando videos, etc. Elas deveriam ser um lugar de muitas possibilidades extracurriculares para os estudantes. Lugares coloridos, estimulantes - e, sobretudo, abertos, acolhedores. Mas, se falta até essa infraestrutura básica, dá pra imaginar a qualidade do serviço.
Como se vê, nossos parlamentares perderam uma grande oportunidade de fazer a diferença. Sete anos para impor uma obrigação vazia e lá se vai a oportunidade de instituir um instrumento detonador de um programa de estímulo ao uso de bibliotecas de qualidade.
Espero que pelo menos nossos professores consigam contornar isso com criatividade.


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