Brasil -


5 de setembro de 2010

Há uma gota de xenofobia em cada palavra

ou ainda: as besteiras que os jornalistas escrevem. 


É raro abrir um jornal e não se decepcionar com alguma crítica ou "análise" cuspida pela caneta de algum jornalista contemporâneo. 
Dessa vez, minha decepção veio com a (felizmente) curta contribuição de André Barcinski no Ilustrada, caderno da Folha de S. Paulo deste domingo. 
O jornalista tenta, da forma mais tola possível, transformar em uma mera "aventura" o interesse do cineasta James Cameron  pelo drama dos índios do Pará diante da pressão do governo pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. Depois de reconhecer a "legitimidade da preocupação" do cineasta (quem ousaria dizer o contrário?), sacou um ridículo argumento de autoridade: Cameron, por não ser um cientista ("ambientalista"), não deve ser levado a sério, por mais que tenha lido sobre o assunto. 
Ora, bolas, quando Cameron decidiu tomar o partido dos índios, tomou uma decisão política. Decidiu defendê-los e usa, a seu favor, um discurso ecológico coerente com seu filme, "Avatar". Pode parecer simplista, e isso pode ser discutido. Mas, se Barcinski fosse inteligente e capaz de deixar sua xenofobia e antiamericanismo de lado, pelo menos nesse assunto, entenderia que Cameron, hoje, representa a, talvez única, oportunidade de os índios que não concordam com a construção da hidrelétrica na região de Belo Monte serem ouvidos enquanto o governo do Estado do Pará e o Federal tentam dissolver a resistência aproveitando-se da falta de poder efetivo das ONGs pró-indios e da situação de "cidadãos de segunda classe" em que os índios vivem há tempos no Brasil. Note que uma matéria da própria Folha de hoje trata do primeiro aspecto. 
A pequena "fantasia" proposta por Barcinski, não sem deboche, de uma Ivete Sangalo pressionando o governo Americano por melhores condições dos brasileiros emigrados para os EUA mereceria ser tratada com mais cuidado, porque é desejável. Vivemos em um mundo progressivamente integrado, e é cada vez menos aceitável usar de argumentos de soberania para justificar desrespeito aos direitos humanos, ainda que alguns governos insistam nisso. Cameron está, no momento, ao colar a imagem dos índios do Pará com os Na'vi de seu filme, fazendo mais em favor daquelas tribos do que o Estado brasileiro fez em muito tempo por todas as tribos em território nacional. Está lhes dando poder político, por meio da opinião da comunidade internacional.
Dizer que o cineasta, tomando essa decisão, julga ser "o rei do mundo" é, no mínimo, delirante. Coisa apropriada para um Ahmadinejad. E mostra debilidade mental (ou pura falta de caráter): quem não se lembra que, quando Cameron disse isso, ao receber o Oscar por Titanic, estava imitando seu personagem em um momento de fantasia voluptuosa no filme premiado (antes do trágico fim)? Barcinski passou por cima disso para fazer do cineasta uma reles espécie de "comissário do governo Bush". Mas o governo Bush se foi, Barcinski!
É uma tolice deslegitimar as ações de Cameron só porque ele é norte-americano. Precisamos entender, de uma vez por todas, que indivíduos norte-americanos não refletem necessariamente o posicionamento do governo americano. O que, aliás, já deveria estar claro para todos desde a guerra do Vietnã. E o mesmo poderia ser dito dos brasileiros, se não estivesse a cada dia mais difícil perceber dissidentes reais na imprensa brasileira.  
Vou torcer, no entanto, que o texto do jornalista tenha surgido num daqueles momentos de cansaço, em que alguém na redação parcebe, na última hora, que vai ficar um buraco na diagramação da página. Vou torcer para que Barcinski tenha sido escolhido de última hora, porque estava de bobeira na redação, para preencher aquele pequeno espaço de papel e viu-se na urgência de dar alguma coisa ao editor. Ainda assim, digo que teria sido melhor meter ali um calhau qualquer. Pois às vezes é preciso muito pouco, de um ponto de vista ético, para fazer declarações desastrosas. 
Sei que para um jornalista essa pode ser uma lição difícil, mas ela deve ser aprendida: entre dizer qualquer bobagem e calar, é melhor calar. O silêncio, às vezes, é melhor companhia para o pensamento.

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