Brasil -


5 de junho de 2010

O Irã fala duas línguas

Depois de tomar conhecimento das declarações do presidente do Irã, feitas ontem, de que seu governo é "o mais democrático do mundo", suspeito que o país atualmente fale duas línguas. Pelo menos, do ponto de vista político. 
A língua oficial, a do presidente Mahmoud Ahmadinejad, é uma língua difícil de compreender. Quando trata de democracia, parece reeditar aquele conto de Borges, em que Averróis tenta entender o significado das palavras "tragédia" e "comédia", enquanto escreve seus comentários à obra de Aristóteles. Tais palavras eram-lhe estranhas, porque as formas culturais às quais elas se referem eram estranhas ao mundo Árabe. Essa estranheza é descrita alegoricamente no irônico diálogo entre o viajante Abulcásim e o alcoranista Farach. Abulcásim, que tinha alcançado a China, tenta explicar durante um jantar a visão que teve de uma representação teatral assistida por ele em Cantão. Ninguém o compreende, inclusive Averróis e Farach, que estavam presentes. Farach, ao contrário, desdenhou do fato, reputando inútil uma narração feita por muitas pessoas quando um único narrador "pode contar qualquer coisa, por mais complexa que seja". O alcoranista não via nenhuma vantagem em que lhe mostrassem uma história, em vez de apenas fazer referência a ela. 
Ahmadinejad parece ter a mesma dificuldade que Averróis, só que com a palavra "democracia". Sua língua oficial não consegue compreender bem do que se trata. 
A outra língua falada no país não tem um nome, ao certo. Mas claramente não é oficial. Ela é utilizada nas ruas, durante os protestos em Teerã e, me parece, é usada por alguns artistas, como Marjane Satrapi e os autores anônimos de O Paraíso de Zahra, entre outros. É uma língua que está ficando cada vez mais expressiva, infelizmente, ao dar vazão à dor. É também uma língua que, apesar disso, parece conseguir compreender, depois do engodo da Revolução, o significado de "democracia". É uma língua de gente que, como o Abulcásim do conto de Borges, conheceu a cultura de outros países, e ainda viu que havia algo de bom nisso. 
A língua oficial contenta-se com fazer uma pálida referência à democracia e desdenha, como Farach, das coisas que são descritas pela outra língua. E quando esta última insiste em falar e exige que mostrem a dita democracia, a primeira rosna. 
É difícil dizer por quanto tempo os iranianos permanecerão ainda bilíngues. Pois, se a língua oficial domina com mão de ferro dentro do país, dentro das casas e ao redor do mundo é a outra língua que se expressa melhor. 

Enfim, começo a suspeitar também que a simpatia de Lula por Ahmadinejad vá além das vantagens estratégicas, como alega a parcela nacionalista da inteligência do PT. Há uma afinidade na linguagem de ambos. Quero dizer, ambos tem um mau gosto por hipérboles. 

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