Brasil -


3 de junho de 2010

O som das taças vazias

Um colega meu estava a fim de enriquecer. Quem não está? Então, ciente de que para ser rico no Brasil é preciso ter amigos ricos, começou a frequentar um grupo filantrópico com um nome parecido com Coletivo de Defesa da Humanidade pelo Progresso do Brasil. Basicamente, um ajuntamento de gente com as contas bancárias muito bem resolvidas e com tempo de sobra para estudar a história do país e os destinos do Homem. E quando não estavam em seus estudos, naturalmente, praticavam algumas ações de ajuda aos pobres. Muitos ali, como me contou depois meu colega, não conseguiam aceitar que o governo brasileiro não tomasse atitudes mais consistentes em prol do progesso, como era nas décadas de 60 e 70.  Naquela época o país crescia de verdade, etc. e tal. Como se vê, não era gente muito jovem...
Era perfeito, pensou meu colega. Afinal, embora não fosse rico como os demais, podia aproveitar os surtos de consciência filantrópica daquele pessoal e introduzir-se como o "irmão menor", o "café-com-leite", que ganharia autonomia graças ao esforço do dito coletivo. E, como queria ser rico, podia aproveitar para aprender seus hábitos, o que só reforçaria os laços num círculo virtuoso do tipo "vocês me deixam entrar - fico parecido com vocês - vocês me aceitam - fico mais parecido com vocês". Não podia ser melhor. Se a vida nunca tinha lhe indicado uma porta aberta, ali sim estava a janela que ele encontrara por si só.
Depois de muito tempo sem ver meu colega, reencontrei-o dia desses. Para surpresa minha, sua cara não era das melhores. Na verdade, foi ainda mais surpreendente encontrá-lo num ponto comum a nós dois, um bar sem muito status, bem plebe rude mesmo. Enfim, um copo-sujo. Batemos um papo ligeiro, perguntamos por um ou outro nome da faculdade. Eu não podia evitar e perguntei: "E o tal coletivo?" "Bem", ele me respondeu, dando uma mexidinha no pescoço, como que para colocar uma vértebra no lugar, "parei de ir". 
- Parou? Ou te expulsaram? (Note-se que sei aproveitar os benefícios da intimidade). 
- Não, parei; parei mesmo. Admiti que não dava mais pra mim. 
Então, para me fazer crer realmente que não fora expulso, contou como tinham sido seus dias em meio àquela nata social gordurosa e entediada.
O tal Coletivo não tinha intenções somente práticas. A sua defesa da humanidade incluía aspectos espirituais. Eles entendiam que o país e o mundo estavam emitindo a cada dia um autêntico Save Our Souls, e interpretavam literalmente o segundo "S". Havia que salvaguardar o pão, mas não só o pão: também as almas tinham que ser guardadas. Afinal, toda calça tem o bolso direito e o esquerdo. Para ter sucesso integralmente em suas ações, o Coletivo desenvolvera certas crenças místicas próprias, e rituais sérios e compatíveis.
Meu colega chegou ao estágio de introdução aos "mistérios" do grupo. Sem entrar em muitos detalhes, me descreveu a iniciação: não havia um mestre para comandar os ofícios, já que tomavam-se por iguais (o que é bastante compreensível, afinal, após possuir uma certa quantidade de dinheiro e poder, todos se parecem muito...). Depois de uma breve sessão de abraços discretos terminados com a imposição recíproca de mãos  sobre o lado esquerdo do peito dos pares que se abraçavam, todos se reuniam em círculo de mãos dadas por alguns minutos, quando permaneciam em silêncio e de olhos fechados. A seguir, um criado entrava, vestido de branco, com algumas taças vazias, e as distribuía entre os presentes, que iam abrindo os olhos. "Simbolizava a abertura para o mundo", disse meu colega, "as taças vazias eram metáforas de nós mesmos". Em seguida, cada participante tangia sua taça vazia na dos dois vizinhos, e fazia ressoar o "Tim-tim da humildade", que precedia a etapa seguinte, quando as taças seriam cheias com água mineral e trocariam-nas entre si, no mais perfeito espírito comunal. 
- O som daquelas taças vibrando pareceu-me quase que ensurdecedor - contou-me. - Para dizer a verdade, não sei o que era mais penoso: ouvir aquele tilintar cheio de humildade grandiloquente ou aguentar as conversas fúteis com aquela gente. Fiquei com saudade de nossos papos bestas de faculdade. Pelo menos eram mais interessantes, acredite. 
Bem, evidentemente meu colega não enriqueceu. Não que eu saiba. Vali-me mais uma vez de nossa intimidade para tirar um sarro de sua cara, me levantei e deixei-o lá no bar, sozinho e olhando para um copo ordinário de cerveja. Um copo cheio.

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