Brasil -


22 de maio de 2011

A inveja, "custe o que custar"?

Nós, jornalistas, somos conhecidos por sermos uma categoria profissional pouco unida. Nossos sindicatos não têm a força que o de outras categorias, apesar de  agremiarem os profissionais que noticiam todas as greves.
Então, não foi surpresa para mim ler a matéria da primeira página do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de hoje. 
Quando eu fui repórter, lá nos idos de 1996, ocorreu um fato qualquer (não me lembro dos detalhes) que pôs um jornalista em evidência. Na época, a editora do jornal (que, aliás, foi minha primeira professora de jornalismo), cunhou uma frase que eu nunca esqueci, principalmente porque nos anos que se seguiram ela pouco se confirmou: jornalista só é notícia quando é preso ou quando morre. Ou alguma coisa do gênero.
Essa sentença me pareceu curiosa, pois eu não sabia dizer, de pronto, se ela era uma constatação factual sobre a profissão ou se era uma diretriz ética. Ou ambos (às vezes, o status quo é o que se quer manter).
Com o tempo, porém, identifiquei nela um componente psicológico. Os jornalistas, seja por um hábito, seja por convicção, não gostam de ser o foco das atenções. E, principalmente, não gostam que outros jornalistas sejam o foco das atenções. O colunismo é a única exceção, até para manter aquela sensação de "esforço e recompensa" de que qualquer profissão precisa. Afinal, para todos os efeitos, só os mais competentes e capazes são titulares de colunas. E, para efeito dos cafezinhos das redações, só os que têm melhor trânsito com a chefia ou com o dono do jornal.
Imaginem, então, se alguém decide pôr o jornalista sob o foco das câmeras. E pior: num programa recheado de humor. E pior ainda: invertendo a praxe jornalística. Inaceitável, certamente inaceitável. 
Ora, mas isso vem sendo feito há algum tempo, entre nós, brasileiros. Ernesto Varela e os filhos do Amaral é o exemplo mais antigo de que posso me lembrar. Mas, penso, esse personagem era melhor aceito pela categoria dos jornalistas por conta da época em que era feito. O Brasil estava sentindo a garganta presa e precisava dizer para si mesmo umas verdades. Precisava pôr autoridades, que abusavam impunemente de suas posições, no palco da comédia política em que o rei estava a cada dia mais nu.
Depois, veio o Casseta e Planeta. Não falo do trabalho de seus redatores na revista em que começaram, mas penso especificamente no programa de TV. Coisa curiosa de se pensar que eles tenham conseguido penetrar, com sua acidez, os cenários da Globo, que sempre foi conservadora, especialmente sobre política. Os "cassetas", porém, já saíram com um slogan que amenizava os espíritos, especialmente dos colegas jornalistas: humorismo verdade, jornalismo mentira. Não era jornalismo, portanto, pensavam o editor, o colunista, o chefe de redação. Era aceitável. 
Com o CQC, a coisa é diferente. Nem mesmo a presença de Marcelo Tas como capitão do time parece estar ajudando com a "companheirada" jornalística. Ou, pelo menos, não junto à Folha. Talvez porque, diferentemente dos "cassetas", eles não peçam licença para poder satirizar os limites do nosso jornalismo político de autoridades. Talvez porque, ainda, eles consigam fazer com que essas mesmas autoridades, que batem cartão nos telejornais do país, "desçam do salto" e se refugiem no "você sabe com quem está falando?" - mesmo que isso, às vezes, não seja dito com palavras, mas com o braço de algum segurança, ou a mão-boba de um ou outro parlamentar metido a "espertinho".
Duas coisas, contudo, me chamaram mais a atenção nessa página da Folha. Uma, o destaque para o sucesso financeiro dos rapazes do CQC, especialmente de Rafinha Bastos e Danilo Gentili. Outra, a acusação de "duas-caras", isto é, de que são bonzinhos na TV e mauzinhos nas redes sociais e nos seus shows de stand-up comedy. Uma colunista chegou a compará-los ao duplo personagem de Stevenson, Dr. Jekyll/Mr. Hyde. Teria o primeiro dado incomodado demais a ponto de descambar na comparação um tanto imprópria?
Imprória? Claro. Comece pelos nomes, leitor-transeunte: a postura politicamente incorreta desses rapazes, presente em seus shows e em redes sociais (e também na TV...), tão exposta, poderia ser comparada a um Mr. "Hyde"?
Mas há um aspecto na comparação de que a colunista realmente não se deu conta: Rafinha Bastos e Vitor Gentili, assim como dos personagens de Stevenson, são, em seus programas e shows, personagens também. Essa talvez seja a principal confusão. Ao contrário dos integrantes do Casseta e Planeta, os do CQC são (bem, nem todos, é verdade) melhores na apresentação de seus textos. Rafinha Bastos, então, é o melhor exemplo. Desde o título de seu show, o Arte do Insulto, ele deixa bem claro a que se propõe. Quem já teve a oportunidade de assistir a seus vídeos no Youtube percebe isso melhor. E ele leva isso para a TV, em seus comentários esdrúxulos no CQC.
O caso de Rafinha, aliás, é o mais elucidativo. Porque ele atua, de fato, nas duas linhas: a jornalística e a humorística. Como jornalista, em A liga, ele aborda  assuntos de utilidade pública e direitos civis de um modo ágil e empático; muito próximo, aliás, de abordagens "sérias" feitas por outros jornalistas. No CQC, ele traz para a bancada do apresentador aquele gaúcho reclamão de seus shows e de seus vídeos do Youtube, uma espécie de âncora mal-humorado que, de vez em quando, morde a própria língua. Pode-se falar em contradição em uma e outra forma de apresentação? Ou será que os jornalistas gostariam que ele fosse realmente homofóbico, como o clichê que ele representa? Será que alguém com mais de um neurônio consegue pôr no mesmo saco a bancada evangélica do Congresso Nacional e o CQC?
Ou será que o que incomoda mesmo é que ele e os demais rapazes do CQC tragam o jornalismo para o primeiro plano e o subvertam diante das câmeras? É engraçado ler um trecho da matéria, que diz: 
"Em uma inversão da lógica jornalística, o mais importante não é a resposta recebida, e sim a pergunta feita."
Será que os colegas jornalistas estão com inveja de não poderem fazer perguntas como a que Danilo Gentili fez a Renan Calheiros? Ou estarão enfurecidos porque o "jornalismo moleque" que o CQC apresenta na telinha faz o seu jornalismo parecer mais "engomadinho" e "bem-comportado", por contraste?
Acho estranho que peçam coerência em matéria de humor. Este país parece não aceitar muito bem algo que vá além da piada-pronta.  Depois da cláusula de embargo aos humoristas vigente nas últimas eleições, talvez uma lei que decrete o bom-mocismo como a regra de conduta seja promulgada em breve. E aí, todos nós poderemos viver como uma sociedade inglesa vitoriana. Aliás, aquela mesma que permitiu a Stevenson conceber um personagem como o Dr. Jekyll, que atemoriza o sono dos jornalistas da Folha...


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