- Foi pra isso que eu acordei cedo? |
Somente hoje, doze dias depois de escrita, leio a postagem de Sabine Righetti no Blog de Ciência da Folha. Isso me animou a voltar a este meu rincão cibernético para desbastar o capim bravo do abandono que já crescia por aqui e para revolver algumas lembranças sobre os tempos de escola.
A jornalista formou-se em uma universidade bem melhor do que aquela em que me formei. Por algum motivo, escolheu o jornalismo (que escolhi também e abandonei, por algum motivo). E tem praticamente a mesma idade que eu - o que acentuou o eco de seu texto em mim.
Eu também tive um segundo grau aborrecido, não só com relação à física, mas em relação às ciências em geral. Acredito que muitos colegas daquele tempo tenham sentido o mesmo, inclusive os que se dedicavam às disciplinas voltadas para as ciências de base e para a matemática. Acredito, ainda, que estes últimos só mantinham seu interesse por elas porque tinham um motivo pessoal muito forte ou porque tinham um caráter pragmático decisivo: queriam ser engenheiros, médicos, veterinários, etc.; logo, precisavam de física, biologia, matemática, etc.
Em tempo: estudávamos todos em escola particular, e vínhamos, em expressiva maioria, do ensino fundamental da rede particular. Não necessariamente o melhor, admito.
Talvez o que me impediu de tornar um completo ignorante nessas matérias tenha sido uma curiosidade natural, daquelas que folheia o conteúdo das lições que estão mais adiante na apostila ou no livro. Mas as aulas eram um quase completo aborrecimento.
A minha curiosidade, inclusive, produzia sonhos. Eu sonhava com o dia em que estaria em uma escola em que aulas de química sobre cálculos de isomeria seriam demonstradas com a ajuda de experimentos em laboratório para mostrar, a olhos vivos, a estabilização de uma reação. Eu sonhava com aulas de botânica dadas em meio a estufas e herbários, e zoologia com dissecções e estudos de morfologia em animais vivos. Eu ansiava que alguém me mostrasse, num computador, o quão útil era o cálculo de matrizes para a computação, como um professor de matemática, de passagem, disse uma vez em sala de aula.
Certa vez, quase pensei estar sonhando quando um professor, vindo do nada, e sem anúncio, decidiu realizar em sala de aula a reação de uma solução de nitrato de prata à luz, acompanhada de sua notação científica. Sempre que pude, repeti à exaustão a experiência nas aulas de fotojornalismo, na faculdade (embora seja bem verdade que, naquela época, a estética me interessasse mais do que a ciência...).
O resto, porém, foram apenas sonhos.
Também convivi, como a jornalista, com um sem fim de musiquinhas e outros recursos mnemônicos criados por um ou outro professor oportunista (um, eu me lembro, chegou a gravar um CD. Promovia-o nas suas aulas...). Engraçado pensar, hoje, que toda aquela poluição de "macetes" ocupando a memória sem relação entre si escoou rapidamente para o ralo do esquecimento, depois do vestibular. Por sorte, uma ou outra pedra de conhecimento "do bom" permaneceu para que eu pudesse, ao menos, saltar de uma para a outra e costurar relações, quando foi preciso.
Somente uma coisa veio em meu auxílio no segundo grau: a literatura. Nada poderia ser mais conveniente àquela idade em que nada parece confiável. Mas mesmo a literatura, ou pelo menos sua parte mais importante, tive de conhecê-la por conta própria, e quase por acidente. Não duvido que isso tenha determinado minha escolha pelo jornalismo - um tanto equivocadamente, admitamos.
Mas, o mais desconcertante de pensar, hoje, quando vou lentamente reconciliando interesses literários com científicos, é ver o quanto esse aborrecimento pode ser causa de um fenômeno curioso entre universitários (principalmente os de humanidades, mas não só): um arrogante desprezo ou um temor sem ponderação diante de tudo o que pareça ciência ou pensamento científico. Vi isso ainda mais claramente quando decidi fazer, como segunda graduação, filosofia. De certa forma, esse comportamento aberrante me serviu de espelho e de auto-avaliação. Vi muita gente se refugiando em qualquer filósofo que, numa leitura rápida e pouco consistente, poderia dar "guarida contra a ciência". Vi, ainda, um comportamento deletério da parte dos professores de filosofia: ou estimulavam (conscientemente ou não) tal comportamento, formando "igrejinhas" em torno de si, ou quando, por força da cátedra, vinham em defesa do pensamento científico, agiam de forma tão imbecil e canhestra, que ficava realmente difícil dar-lhes razão - a menos que se fosse tão imbecil e sem talento quanto.
E, quando digo que isso não afeta apenas as humanidades, lembro-me do que um professor universitário de biologia me disse, certa vez, sobre seus alunos de medicina, enfermagem (e mesmo de biologia): um crescente número de adeptos do criacionismo "científico". Não é preciso ser um ateísta militante como um Dawkins para perceber que o criacionismo, em ciência, é uma construção argumentativa tão equivocada como aquela "aposta na existência de Deus" proposta por Pascal: inútil para o crente, que já possui fé na existência; divertimento para o descrente, ao ver um crente fervoroso agindo como croupier. No entanto, é preciso dizer que a aposta de Pascal ainda eram bem mais elegante, em sua forma de expressão, do que o são muitos criacionistas por aí...
Acho que Sabine Riguetti foi mais feliz do que eu. Teve melhor visão, creio. Eu cheguei a ouvir falar em jornalismo científico na falculdade, mas, naquela época, eu vivia imerso nesse ceticismo atoleimado com relação à ciência que obnubila a cabeça de muitos universitários ainda hoje. Fico feliz com sua felicidade, sem hipocrisia.
Hoje, embora enxergue problemas teóricos ainda a ser esclarecidos sobre o chamado "jornalismo científico", que vão além da simples desconfiança (às vezes alimentada por exemplos concretos...) dos cientistas com relação à capacidade do jornalismo de reportar bem o estado da ciência, consigo ver a importância da defesa da divulgação científica feita por um paladino intergalático de Cosmos, como Carl Sagan. Afinal, que melhor contribuição estética a ciência nos daria do que a de vermo-nos como dentes-de-leão vagando, com nossas sementes de dúvida e de desejo, pelo universo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Insira aqui sua própria infâmia.